domingo, setembro 21, 2008

Em privado, na solidão




Tudo melhora, a vida sorri, o futuro alonga-se e os mais profundos temores atenuam-se ou dissipam-se na totalidade quando fechamos a porta de uma casa-de-banho e nela nos resguardamos do mundo.

Por isto mesmo há algo de inquietante na ideia de uma casa-de-banho ser partilhada, ainda que sequencialmente, por milhentos estranhos. Como a nossa noção de "estranhos" é muito lata e, na realidade, alguns estranhos são mesmo muito estranhos, causa ainda mais estranheza pensar "fazer sala" numa casa-de-banho pública. Seria suposto que a permanência no seu interior fosse reduzida ao tempo estritamente necessário. Mas não. Há quem nelas permaneça com uma caneta (por vezes bem grossa) na mão e se dedique a escrever os mais íntimos apelos e desabafos nas suas portas e paredes, outrora alvas e puras.
E para quê? Para quê massacrar quatro quintos dos nossos sensíveis sentidos permanecendo nesses exíguos cubículos a escrever aquelas inanidades? A maioria do que é escrito nas casas-de-banho é, assuma-se o trocadilho, uma merda!

Confesso ser um leitor crítico e pouco tolerante para com erros ortográficos e de sintaxe e para com a falta de conteúdo no que se escreve por aí, seja num jornal, num blogue ou num WC público. Por isso é sempre com um prazer extra que consigo apreciar boa literatura de casa-de-banho com mensagens que nos possam enriquecer culturalmente, divertir, educar e entreter.
Mas... onde encontrá-la?
Pois, de tão óbvio ninguém o deduz.
Ora, é nos museus, em bibliotecas, na Gulbenkian, Casa de Serralves, na Cinemateca...


Assim, por exemplo, no WC dos homens do Museu Colecção Berardo alguém escreveu a ocre, numa caligrafia firme e rectilínea:
"Sou cubista. Aprecio cus de todas as formas e cores. Tel. 96145XXXX" sendo, mais abaixo, ripostado por alguém que em forma de reprimenda gatafunhou:
"Pra um cubista um cubasta!"

Também o pungente e colorido apelo "Molha o pincel e pinta-me toda, ó Miró!" foi escrito na porta de uma das privadas do WC das senhoras neste Museu, certamente recorrendo à parafernália de canetas, pincéis e batons que uma mala de mulher sempre transporta.


É bem conhecida a licenciosidade dos cinéfilos. Habituados a ver em salas escuras todo o tipo de libertinagens é natural que não tenham tento na caneta quando escrevem nas paredes do WC da Cinemateca coisas como "Felato à Pasolini mesmo em contre-plongé".


Os melómanos não são mais comedidos no arrojo da sua mini-prosa. Eis alguns opus no recato das privadas da Casa da Música:
"Toco todos os instrumentos de sopro, com e sem batuta. Marca encontro. Tel. 93635XXXX". Enigmático...
E uma inconsequente e rebuscada figura de estilo: "Pra cada cu um flato, pra cada flauta um felato."

Que diferença das casas-de-banho das centrais de camionagem e das estações de serviço! O povo inculto e iletrado nem sabe o que perde por não ter a capacidade de tentar tornar erudito o acto mais baixo da existência humana. A de todos e cada um.

--oOo--

P.S. O texto e a imagem só aparentemente não se correlacionam. Na verdade, comecei a fabricar aquela imagem para ilustrar um post sobre livros e leitura, de como é bom ler, de como os livros são um companheiro para todas as solidões, de como eu gostaria de morrer num fim de tarde de Verão a ler numa cadeira de baloiço, com o livro a soltar-se das minhas mãos que, ao bater no chão, marcasse, com esse som, o meu ponto final...
Desmotivado porque o que tinha imaginado como interessante pareceu-me imbecil no "papel", desisti de insistir que fizesse algum sentido e interrompi a feitura da imagem.
O texto , por seu lado, também não corresponde ao que tinha programado escrever. Tinha previsto que fosse divertido e irónico, mas tornou-se moralista e absurdo. Nem sequer consegui inventar frases suficientes para lhe dar um, ainda que falso, cunho documental. Descambou.
Assim, texto e imagem correlacionam-se por terem origem em ideias que achei brilhantes, mas que fracassaram ao ser concretizadas.
Para não parecer pretensioso não me atreverei a escrever que isto poderia ser uma metáfora da própria vida.
Da minha, pelo menos.